terça-feira, 25 de setembro de 2012

MANDALA E LEMBRANÇAS

Faz dezesseis meses que você partiu. Prometi que um dia escreveria nossa história. Ainda não o fiz. Guardo em casa as mandalas que pintei e as que esculpi em barro – lembranças de um tempo partilhado com você. Tempo que passou.

Esta noite você visitou meus sonhos: escreva sobre o tempo, você pedia. Penso no tempo e na sua velocidade. Durou três meses o nosso último encontro. Dias longos, calmos, quietos e profundos. Absolutamente convidativos à reflexão.

Ah! Tivemos também momentos descontraídos, “vai!”, diria você. É verdade, riamos quando você me contava todas as mentiras que já havia dito. Uma pior que a outra. Lembro- me agora daquela sobre o piano mal assombrado que você contava para suas irmãs só para que elas não o tocassem. 
Pobres crianças que acreditavam existir pequenos monstros de cabeça verde e sanguinolenta morando dentro do piano de caldas. Você foi terrível!

Em outros momentos choramos. De mãos dadas ficávamos por horas até a angústia passar. Às vezes demorava muito, mas logo o dia clareava e tomávamos um novo fôlego.
Sinto saudades do seu cheiro.

Nosso quarto tinha o pé direito alto, com as paredes claras e uma janela grande de onde era possível ver muitas árvores, lembra? Os pássaros cantavam para nós ao entardecer. Eu desligava todos os aparelhos sonoros para ouvir a melodia. A princípio você se incomodava, estranhava a quietude.

Às vezes recebíamos visitas muito a contragosto, pois queríamos ficar a sós. Quando não tinha jeito abríamos a porta e deixávamos o mundo adentrar com sua característica invasiva. Traziam notícias de parentes, quitutes, alegrias, dissabores e um bom tempo de conversa que aproveitávamos como se nada pudesse ser mais importante. Ao final da visita limpávamos a casa toda para espantar o mau olhado, a cobiça, os germes, a chatice da inveja. E aí voltávamos a nós.

Lembra daquela visita que chegou bem na hora do jantar? Como esquecer, não é? Era o dia da sua sopa predileta: mandioquinha com cenoura. Até hoje não sabemos o sabor da sopa. Esqueceu? Como você se esqueceu? Eu entrei na sala com a sopeira cheia e tropecei virando toda a bandeja no chão. Fiquei com uma bolha de queimadura na mão direita. Não sabia se mandava a visita pra puta que o pariu ou se limpava a sujeira. Foi olho gordo eu tenho certeza. Você sorriu e veio me acudir. Aproximou-se do meu ouvido e sussurrou: acalme-se, poderia ter sido muito mais grave.

E realmente, a visita nunca mais apareceu. Também, já havíamos combinado: se aparecesse não abriríamos a porta e ainda colocaríamos sal grosso e alho nos cantos da casa até que a mesma se fosse. Visitas insolentes.

O melhor de tudo era estar junto. Pra comer, pra dormir, pra falar, pra escutar. Junto, sempre junto. Era um presente. Foi o tempo mais difícil e mais importante da minha vida.

Volto no tempo. Não foi seu pedido? Então agora terei que contar. Lembra quando nos conhecemos? Puxa faz tempo! Foi lindo. Lágrimas escorriam de nossos olhos. Nos abraçamos calorosamente. 
Daquele momento até hoje compartilhamos nossas diferenças para enfim nestes últimos três meses celebrarmos nossos afetos. Eu jamais imaginei que poderíamos experimentar algo tão profundo. Ouso dizer que foi situação mais dolorida pela qual já passei em minha vida, no entanto, a mais valiosa e indescritível de todas.

Certa tarde você me olhou nos olhos e eu entendi que deveria partir. Voltei para casa com todos os meus pertences. Eu e a cidade não mais nos pertencíamos. É como se eu me encontrasse na fissura do osso quebrado – um não lugar – desconforto.

Tenho uma confissão para fazer: visitei você diariamente por dez dias. Rondei a casa, sorri, relembrei nossos abraços, chorei, espiei pelo buraco da fechadura, colei as mandalas que fiz nas paredes e muros externos. Talvez você nunca tenha sabido. Soube? Como soube? Você me viu por ali? Não, não é possível. E não me chamou? Nunca ousou me chamar?

Queria ter podido ficar mais. Não me permitiram. Te sedaram. Não deixaram que eu te levasse pra casa comigo. Para segurar na tua mão até o último suspiro.

Ainda ouço sua voz e seus passos apressados. Os pássaros continuam a cantar ao entardecer.
E espero a cada dia por uma noite de sonhos com você.

Revista Escrita Rua Marquês de São Vicente, 225 Gávea/RJ CEP 22453-900 Brasil Ano 2012. Número 14. ISSN 1679-6888. escrita@puc-rio.br

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Na terra e No céu

Sapatos voavam do céu numa tentativa de aniquilação dos apegos angelicais. Ano após ano o ritual se repetia para as candidatas a anja.

No céu:

- Como pensam andar sobre as nuvens com saltos altos? Não percebem que farão rombos nos preciosos tapetes algodoados?

Tristes e infelizes as candidatas eram forçadas a desfazerem-se de todos os seus sapatos, afinal, anjos não usam sapatos e ainda por cima voam.

Na terra:

Maria corria pelo terreno baldio atrás do filho Marcelo que todos os dias fugia bem na hora de ir para a escola. No meio do campinho Maria observa um amontoado e com seu sotaque nordestino brada:

- Era só o que me faltava agora transformarem o campinho em lixão. Será possível?

Marcelo surge do meio do monte e grita:

- ói, mãe, desta vez eu cheguei bem na hora da chuva de sapatos. Não é que dei sorte "memo"?

Perplexa Maria ajoelha e pede aos céus pra ficar com um par daqueles ali. Um par não faria diferença. Promete uma vela e uma cruz pra Santa dos pés (des)calços. Leva consigo uma anabela vermelha com detalhes brancos pra usar no baile de sábado e de quebra, prometendo uma outra vela, leva um sapato salto agulha pra quando for madrinha de casamento.


No céu:

Benê chora a perda dos sapatos alegando que isto não estava no contrato que assinou quando se candidatou à vaga de anja. Tampouco quer que suas asas cresçam e peleiteia asas de silicone que podem ser removidas na hora de dormir.


Na terra:

Maria acendou 7 velas e para cada vela se deu o direito e pegar um par de sapatos. Acendeu uma vela de 7 dias e pegou mais 7 pares de sapato. Prometeu rezar uma novena e com esta feita colocou na sacola os últimos 9 pares que escolheu.

Sentia-se vanGLORIAda. Olhou pro céu e viu um rosto. Coçou os olhos e voltou a olhar pra cima. Sim, havia um rosto entre as núvens....estaria vendo coisas?


No céu:

Benê rompeu a regra máxima: enfiou a cara na núvem e fez-se ver pelos humanos. Algo estritamente probido às candidatas de anja.


Na terra:

Maria encarou a face entre as núvens


No céu:

Benê envia um vento com mensagem sonora: foi daqui que cairam todos estes sapatos


Na terra:

Maria se encanta com a notícia e pergunta se pode dar uma espiadinha na loja


No céu:

Maria sente-se lisonjeada pisando com os pés descalços em tapete tão algodoado


Na terra:

Benê não sabe o que fará com tantos sapatos num lugar tão pobre



Não havia mais o que fazer a troca de lugar era irreversível

Sua cabeça girava produzindo pensamentos coloridos. Um fênomeno próprio dos dias de muita inquietação.

O arcoíris produzido expandia-se alcançado uma distância nunca antes vista.

À medida que seus pensamentos reluziam, seu corpo diminuia de tamanho até que pode transitar no universo dos insetos. Não fossem as cores que o envolviam passaria completamente desapercebido do mundo humano.

Sentia-se a pulga atrás da orelha e pela primeira vez entendeu a expressão mas ainda não sabe como explicá-la. Seriam coisas de inseto ou de humano reduzido ao quase nada? Também não sabe dizer.

Perambulou na sua nova forma por alguns meses humanos sem se dar conta que sua luz diminuia. Até que esta se apagou e num piscar de olhos estava de volta à sua mesa de trabalho usando as mesmas lentes para miopia de antes.

Levantou-se e caminhou até a janela. Saltou e não morreu. Impressionado ficou em saber que havia sobrevivido à tentativa de suicídio.

Foi amparado pela família que o acolheu sem qualquer restrição. O amavam.

O homem dos pensamentos coloridos manteve sua vida humana regulada pelo tempo dos insetos. Assumiu a miopia e calou-se para que seus dedos produzissem falas.

E esta é uma delas.

Paula Tura

Olim-piadas

Antes fossem piadas engraçadas. Mas é sério e chega a ser triste.

Vibro com os atletas. Torço pela nação. Admiro a dedicação. Tudo em vão.

Os resultados dos jogos, que vez ou outra podem surpreender, são em sua maioria previsíveis.
Os países que tem as melhores estruturas se darão melhor, obviamente.

Atletas por vezes deixam seus países de origem para treinar, por longos anos, em países onde os centros de treinamento são mais adequados. Na competição defendem as cores de sua bandeira nacional.

Fico frustrada, entusiasmada e ao mesmo tempo perplexa. São tantos acontecimentos em uma fração de segundo. Choro, me desespero e penso: são reflexos da sociedade e apenas isto.

A economia forte trás a medalha de ouro. A economia fraca não trás medalha.  Simples e cruel assim mesmo.

O povo assiste ao espetáculo esperando que surja um novo heroi. Se frustra também.

Já cansei há muito do Neymar. Pelo que me consta um time contem 11 jogadores. Para o Brasil só existe um em campo: Neymar. É a bola da vez como já foram tantos outros. Fico enjoada por sabe que seu destino será engordar, cair na difamação da mídia e se vangloriar do passado. Como se o futuro nunca pudesse ser planjeado e o presente foi vivido conforme aquilo que a Nike indicou.

Admiro a força de vontade dos participantes das Olimpíadas, sua garra, sua determinação para ser corpo máquina. Sua vontade de vencer ainda que lesionados e lutando contra a idade que (sempre) chega. Admiro a emoção, a sensibilidade, a crença de que foram feitos para vencer acima de qualquer coisa. A persistência frente a derrota e treino após treino como um robô até a exaustão.

Acho lindo o ginasta olímpico. O invejo eu diria. Por outro lado penso como eu odiraria as barras, o cavalo, o solo, a argola, a trave se tivesse que ficar o dia inteiro trancada na mesma sala que eles, dependendo deles, trepada neles. A repetição do movimento me levaria à contemplação?

Fico incomodada com meu corpo moldado ao sofá assistindo a corpos rijos, definidos, "saudáveis", galopantes e vibrantes. Passivamente me corpo vibra com a ação do outro. Enquanto vejo o movimento alheio tolho meu corpo de movimentar-se. Concluo que há algo errado e saio pra caminhar.

Olim-piadas estão a chegar aqui nas bandas latinas. Como será que ser portarão nossos corpos? Teremos dinheiro para assistir aos jogos? Em Londres não se teve e de última hora implantou-se um público de professores e alunos levados gratuitamente aos estádios. Somos pobres aqui abaixo do equador. Estamos habituados aos corpos soltos nas praias. Ficariamos calados assistindo aos jogos de tênis? Caberiam todos os visitantes na baixada fluminense?

Acompanharei, pensarei e escreverei com notícias da terra do sol de 40 graus.

Paula Tura

sábado, 7 de julho de 2012

A mulher esquecida

Onde encontro a mulher que habita um corpo conhecido como corpo de mulher? Um corpo que pode ou não ter seios, vagina, pêlos, protuberâncias. Nos hospitais oncológicos ou nas clínicas de estética muitas mulheres tem corpos dilacerados, corpos ciborgues, corpos mutilados. Umas devido a doença outras por opção.

Onde encontro a mulher que habita este corpo? Em quais de suas ações posso saber sobre ela, posso ouví-la? Vamos esquecer que ela foi educada por rígidos padrões de educação familiar, escolar e midiáticos a domar seu corpo, a ser servil, a não desacatar seu companheiro. Mesmo assim em alguma de suas ações há um resquício de algo que pode lhe mostrar o  não estígma que carrega. Que vai totalmente na contramão da classe social de onde ela vem; que expressa um fio de vida.

Ela demonstra um sinal, mesmo que sutil, de uma alma escondida por trás do cimento, do recalque, da pornografia. Ela sabe, no fundo que não há algo errado, só não consegue saber o que é. Não lhe deram instrumentos de análise.

Eu quero descobrir esta mulher. Quero saber onde encontrá-la. Quero conhecê-la e lhe dar a mão mesmo que não a toque quero sentir sua fraca respiração. Quero acima de tudo me colocar à sua disposição.


Um título

A nação alvinegra segue feliz. Estádio cheio de esperanças na conquista inevitável de um título ganho a cada partida. Foi uma ótima campanha durante o torneio.

Num país onde transitar entre diferentes religiões é algo natural, torcer para mais de um time não é algo fácil. Assumir que está se apoiando um outro time devido a sua campanha ou simplesmente por seu merecimento é apenas para corajosos.

Torci para o Corinthians no recinto de seus arqui inimigos são paulinos. Cantei o hino, fiz grito de guerra, gritei na janela nos momentos de gol. Lembrei de meu pai, Corinthiano roxo, que em seus mais de 60 anos veria pela primeira vez seu time ser campeão da Libertadores.

Os são paulinos se queixavam de não ter mais argumentos contra os corinthianos. Levantei a questão de que se é para termos inimigos que eles estivessem à nossa altura. Que nos estimulassem a crescer. Que pudessemos reconhecê-los e admirá-los.

Não considero a competição como algo intrínseco ao ser humano. Acredito que a competição seja algo aprendido culturalmente. Modelado e estimulado em diversas sociedades. Como é que se julga quem é melhor? Isto de alguma forma aprendemos. Colocamos regras e o pior de tudo internalizamos esta conduta.

Observar o estádio lotado de torcedores anônimos me instigava: a rendição a processos externos; o aprendizado da validação das competições, premiações, reconhecimentos; a transferência da premiação daquele time para cada torcedor - como se estes passassem a se sentir mais fortes, poderosos, empoderados, melhores pais, melhores profissionais, mais capazes, mais fortes, mais seguros.

Passei o jogo todo com os olhos vidrados na televisão e os pensamentos em ebulição. Como somos ainda movidos por emoções! Como vivemos tudo tão à flor da pele! Como ainda não conseguimos, enquanto raça transitória neste planeta, observar, avaliar, interpretar nossas ações. E está tudo ali, gravado no vídeo, fotografado para a posteridade. Como ainda nos falta o exercício da reflexão.

Os fotos de artifício deram um show mais bonito do que as celebrações de ano novo. A nação alvinegra estava triunfante, se embebedeu, bateu carros, se atrapalhou - como já se esperava - nas celebrações.

Voltei pra casa e notei que a zona leste se cobria de preto e branco. Casas, comércios, moradores. Por alguns dias ou até algum outro evento extraordinário muitos manterão a autoestima elevada. Pena desconhecerem os instrumentos que os levariam a despertar sua autoconfiança por si mesmos.

Salve o amado clube brasileiro, às ilusões por ti causadas e o reforço à efemeridade.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Listas de casamento

"eu sou aquele amante à moda antiga; do tipo que ainda manda flores; apesar do velho tênis e da calça desbotada ainda chamo de querida a namorada"

Os casamentos na antiguidade eram atos políticos, de conveniência, de interesses econômicos. Hoje encontramos alguns que ainda o são.

Lembro-me de frequentar quando criança das festas de noivado das minhas tias, de participar dos longos meses de entrega dos convites de casamento, de receber em casa os pais dos noivos, de lhes servir café. Naquele tempo não haviam listas de casamento. Os pais dos noivos e os padrinhos se encarregavam, em sua maioria, de dar a casa, os móveis, a geladeira, o fogão e fazer a decoração.

Acho que ainda sou um amante à moda antiga.

Fui madrinha de alguns casamentos. Poucos dos meus apadrinhados continuam juntos, o que não acho que todo ruim porque já imaginava que a coisa não andaria bem.

Mas o que me move a escrever estas linhas são as listas de casamento. Pois bem, passaram-se os anos e instituiram anexos ao convite de casamento: convites individuais para atender à recepção e a lista de casamento. Lembro-me de minha mãe chocada ao receber indicações sobre que presente dar: "Onde já se viu isto, dizia ela". Minhas avós achavam ótimo pois finalmente a noiva não ganharia dois liquidificadores, duas batedeiras, dois faqueiros. "Agora tudo ficou mais organizado".

Anos se passaram. Hoje temos as listas online. Como estou frequentando muitos casamentos, comecei a perceber que todos os noivos sugeriam os mesmos presentes. Fiquei encucada e fui pesquisar. Há, duas opções para as listas:

a)os noivos podem escolher receber em casa os presentes comprados online. Caso ganhem presentes repetidos a loja aceita a troca do presente por um outro do mesmo valor

b)os noivos não recebem presente algum e transformam todos os presentes em crédito, trocando-os por um presente de valor maior

Fiquei estarrecida, perplexa, chocada. Escolho a dedo os presentes que dou de casamento. Muitas vezes não compro da lista. Vou até a loja, faço embrulho personalizado e levo até o casal porque imagino que em alguma data jantaremos juntos e utilizaremos o presente dado. Sempre acreditei que os presentes são laços afetivos que ofertamos aos outros - sejam estes de casamento, aniversário ou qualquer outra celebração.

Fiquei também com vergonha de ter comprado presentes que talvez nem tenha sido escolhido pelos noivos. Por agora imaginar que talvez estes estivessem esperando o dinheiro ao invés do objeto. Fiquei triste por ser ingênua e romântica.

Em breve outros casamentos virão e não mais olharei as listas de casamento. Comprarei algum presente que penso ter o perfil do casal, customizarei o mesmo e lhes ofertarei em nome do amor, da união e do aprendizado que se faz na vida a dois.

Farei assim um protesto silente em pro do que o dinheiro nunca poderá comprar.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Venho por meio desta declarar que recebi permissão para nascer, crescer, estudar, morar e trabalhar nesta cidade. Desta forma foi acordado que me seria pago uma indenização mensal pelos trabalhos por mim prestados logo que me mostrasse pronta para ingressar o mercado de trabalho.

O valor desta indenização prevê gastos com alimentação, moradia, vestuário e transporte. O lazer é oferecido gratuitamente pelo Estado através dos eventos organizados nas praças, ruas da cidade e outros locais culturais.

Com a "Indenização de Existência" consigo frequentar o que chamamos hoje de supermercados e que já foram anteriormente - quando não havia o soldo mensal - os refeitórios onde nos alimentavam ao longo de nossa jornada de trabalho. Os supermercados são muito atrativos: contém uma infinidade de produtos perfeitamente alinhados em prateleiras e divididos em setores; em alguns locais os produtos são deixados dentro das próprias caixas - exatamente como vêm das fábricas - para que nós mesmos, os consumidores, os retiremos delas.

Há também os shopping centers, locais geralmente amplos sem qualquer possibilidade de percepção da passagem do tempo ou recepção da luz solar. Antigamente eram grandes galpões de confecção, armazenagem e distribuição das roupas que recebiamos de nossos senhores para o desenvolvimento de nossas responsabilidades diárias na firma.

Sobre as atividades de lazer vejo pouca mudança. As praças públicas recebiam as caravanas com uma variedade de apresentações artísticas, alimentos, prazeres da carne, objetos de locais distantes. Há hoje um calendário na cidade e sabemos exatamente - com dia, hora e duração - quando as feiras acontecerão. Não mais são nômades as caravanas. No entanto ainda há tendas. Os anões e gêmeos siameses foram substituídos por mulheres ciborgues com seus grandes músculos, pele lisa e uma cor de pele amendoada mesmo no inverno. Os alimentos caseiros agora são produzidos em laboratórios e oferecidos em pequenas cápsulas coloridas.

O transporte mudou. Se antes morávamos em acomodações próximas aos feudos para que nossos senhores nos despertassem gentilmente ao alvorecer para que não perdessemos a hora. Hoje moramos a longas horas de distância do campo de trabalho. Dizem os governantes que facilmente nos deslocamos pela cidade através do transporte público. Dizem os trasnportados que se sentem como sardinhas enlatadas. Diria eu que somos ainda os imigrantes cruzando oceanos em busca de uma vida melhor.

No entanto a "Indenização de Existência" contempla benefícios inúmeros de falso prazer e supostas vantagens do um sobre o outro. Prevê inclusive reajustes anuais, o que realmente é uma maravilha e uma compensação para os superficiais momentos de dúvida sobre o papel que temos que desempenhar dentro de um projeto que não é nosso. E assim seguimos sobre a plastificada felicidade de cumprir nossas tarefas dia após dia com a absoluta certeza de não sabermos a que viemos e a sensação de dever cumprido.
Numa grande loja de materiais de construção:

- Total da conta R$ 19,23 e por mais R$ 4,99 a senhora concorre a 20 mil reais

Paguei a conta e saí da loja com a cabeça voltada em mil pensamentos:

a) Porque é que eu tenho que pagar para concorrer a 20 mil reais?

b) Como é que se sente a funcionária do caixa que possivelmente mora no subúrbio, trabalha por escala, não tem 20 mil reais oferecendo esta proposta aos clientes da loja?

c) Onde está o meu direito de (não sei se coloco aqui cidadã ou apenas ser existente) em não querer ouvir tais propostas como também não querer ouvir o som alto dos carros na rua, ou o som do carro da pamonha ou da cândida?

d) Onde é que coloco a minha indignação sobre tudo isto? Indignação pelas pessoas que trabalham longam horas por pequenos salários achando que este lhes é o caminho merecido? Indignação pelas pessoas que são orientadas a fazer propostas indecorosas sem questioná-las ou pior sem o direito de questioná-las.

Não vejo saída. Vejo questões. Vejo intenções más que servem a interesses de segregação e isto entristece. Sinto a necessidade de conversar mais, de ouvir o que estas pessoas dos caixas das lojas pensam a seu próprio respeito. Será que não percebem que merecem mais do que lhes é oferecido?