"eu sou aquele amante à moda antiga; do tipo que ainda manda flores; apesar do velho tênis e da calça desbotada ainda chamo de querida a namorada"
Os casamentos na antiguidade eram atos políticos, de conveniência, de interesses econômicos. Hoje encontramos alguns que ainda o são.
Lembro-me de frequentar quando criança das festas de noivado das minhas tias, de participar dos longos meses de entrega dos convites de casamento, de receber em casa os pais dos noivos, de lhes servir café. Naquele tempo não haviam listas de casamento. Os pais dos noivos e os padrinhos se encarregavam, em sua maioria, de dar a casa, os móveis, a geladeira, o fogão e fazer a decoração.
Acho que ainda sou um amante à moda antiga.
Fui madrinha de alguns casamentos. Poucos dos meus apadrinhados continuam juntos, o que não acho que todo ruim porque já imaginava que a coisa não andaria bem.
Mas o que me move a escrever estas linhas são as listas de casamento. Pois bem, passaram-se os anos e instituiram anexos ao convite de casamento: convites individuais para atender à recepção e a lista de casamento. Lembro-me de minha mãe chocada ao receber indicações sobre que presente dar: "Onde já se viu isto, dizia ela". Minhas avós achavam ótimo pois finalmente a noiva não ganharia dois liquidificadores, duas batedeiras, dois faqueiros. "Agora tudo ficou mais organizado".
Anos se passaram. Hoje temos as listas online. Como estou frequentando muitos casamentos, comecei a perceber que todos os noivos sugeriam os mesmos presentes. Fiquei encucada e fui pesquisar. Há, duas opções para as listas:
a)os noivos podem escolher receber em casa os presentes comprados online. Caso ganhem presentes repetidos a loja aceita a troca do presente por um outro do mesmo valor
b)os noivos não recebem presente algum e transformam todos os presentes em crédito, trocando-os por um presente de valor maior
Fiquei estarrecida, perplexa, chocada. Escolho a dedo os presentes que dou de casamento. Muitas vezes não compro da lista. Vou até a loja, faço embrulho personalizado e levo até o casal porque imagino que em alguma data jantaremos juntos e utilizaremos o presente dado. Sempre acreditei que os presentes são laços afetivos que ofertamos aos outros - sejam estes de casamento, aniversário ou qualquer outra celebração.
Fiquei também com vergonha de ter comprado presentes que talvez nem tenha sido escolhido pelos noivos. Por agora imaginar que talvez estes estivessem esperando o dinheiro ao invés do objeto. Fiquei triste por ser ingênua e romântica.
Em breve outros casamentos virão e não mais olharei as listas de casamento. Comprarei algum presente que penso ter o perfil do casal, customizarei o mesmo e lhes ofertarei em nome do amor, da união e do aprendizado que se faz na vida a dois.
Farei assim um protesto silente em pro do que o dinheiro nunca poderá comprar.
quinta-feira, 29 de março de 2012
quinta-feira, 8 de março de 2012
Venho por meio desta declarar que recebi permissão para nascer, crescer, estudar, morar e trabalhar nesta cidade. Desta forma foi acordado que me seria pago uma indenização mensal pelos trabalhos por mim prestados logo que me mostrasse pronta para ingressar o mercado de trabalho.
O valor desta indenização prevê gastos com alimentação, moradia, vestuário e transporte. O lazer é oferecido gratuitamente pelo Estado através dos eventos organizados nas praças, ruas da cidade e outros locais culturais.
Com a "Indenização de Existência" consigo frequentar o que chamamos hoje de supermercados e que já foram anteriormente - quando não havia o soldo mensal - os refeitórios onde nos alimentavam ao longo de nossa jornada de trabalho. Os supermercados são muito atrativos: contém uma infinidade de produtos perfeitamente alinhados em prateleiras e divididos em setores; em alguns locais os produtos são deixados dentro das próprias caixas - exatamente como vêm das fábricas - para que nós mesmos, os consumidores, os retiremos delas.
Há também os shopping centers, locais geralmente amplos sem qualquer possibilidade de percepção da passagem do tempo ou recepção da luz solar. Antigamente eram grandes galpões de confecção, armazenagem e distribuição das roupas que recebiamos de nossos senhores para o desenvolvimento de nossas responsabilidades diárias na firma.
Sobre as atividades de lazer vejo pouca mudança. As praças públicas recebiam as caravanas com uma variedade de apresentações artísticas, alimentos, prazeres da carne, objetos de locais distantes. Há hoje um calendário na cidade e sabemos exatamente - com dia, hora e duração - quando as feiras acontecerão. Não mais são nômades as caravanas. No entanto ainda há tendas. Os anões e gêmeos siameses foram substituídos por mulheres ciborgues com seus grandes músculos, pele lisa e uma cor de pele amendoada mesmo no inverno. Os alimentos caseiros agora são produzidos em laboratórios e oferecidos em pequenas cápsulas coloridas.
O transporte mudou. Se antes morávamos em acomodações próximas aos feudos para que nossos senhores nos despertassem gentilmente ao alvorecer para que não perdessemos a hora. Hoje moramos a longas horas de distância do campo de trabalho. Dizem os governantes que facilmente nos deslocamos pela cidade através do transporte público. Dizem os trasnportados que se sentem como sardinhas enlatadas. Diria eu que somos ainda os imigrantes cruzando oceanos em busca de uma vida melhor.
No entanto a "Indenização de Existência" contempla benefícios inúmeros de falso prazer e supostas vantagens do um sobre o outro. Prevê inclusive reajustes anuais, o que realmente é uma maravilha e uma compensação para os superficiais momentos de dúvida sobre o papel que temos que desempenhar dentro de um projeto que não é nosso. E assim seguimos sobre a plastificada felicidade de cumprir nossas tarefas dia após dia com a absoluta certeza de não sabermos a que viemos e a sensação de dever cumprido.
O valor desta indenização prevê gastos com alimentação, moradia, vestuário e transporte. O lazer é oferecido gratuitamente pelo Estado através dos eventos organizados nas praças, ruas da cidade e outros locais culturais.
Com a "Indenização de Existência" consigo frequentar o que chamamos hoje de supermercados e que já foram anteriormente - quando não havia o soldo mensal - os refeitórios onde nos alimentavam ao longo de nossa jornada de trabalho. Os supermercados são muito atrativos: contém uma infinidade de produtos perfeitamente alinhados em prateleiras e divididos em setores; em alguns locais os produtos são deixados dentro das próprias caixas - exatamente como vêm das fábricas - para que nós mesmos, os consumidores, os retiremos delas.
Há também os shopping centers, locais geralmente amplos sem qualquer possibilidade de percepção da passagem do tempo ou recepção da luz solar. Antigamente eram grandes galpões de confecção, armazenagem e distribuição das roupas que recebiamos de nossos senhores para o desenvolvimento de nossas responsabilidades diárias na firma.
Sobre as atividades de lazer vejo pouca mudança. As praças públicas recebiam as caravanas com uma variedade de apresentações artísticas, alimentos, prazeres da carne, objetos de locais distantes. Há hoje um calendário na cidade e sabemos exatamente - com dia, hora e duração - quando as feiras acontecerão. Não mais são nômades as caravanas. No entanto ainda há tendas. Os anões e gêmeos siameses foram substituídos por mulheres ciborgues com seus grandes músculos, pele lisa e uma cor de pele amendoada mesmo no inverno. Os alimentos caseiros agora são produzidos em laboratórios e oferecidos em pequenas cápsulas coloridas.
O transporte mudou. Se antes morávamos em acomodações próximas aos feudos para que nossos senhores nos despertassem gentilmente ao alvorecer para que não perdessemos a hora. Hoje moramos a longas horas de distância do campo de trabalho. Dizem os governantes que facilmente nos deslocamos pela cidade através do transporte público. Dizem os trasnportados que se sentem como sardinhas enlatadas. Diria eu que somos ainda os imigrantes cruzando oceanos em busca de uma vida melhor.
No entanto a "Indenização de Existência" contempla benefícios inúmeros de falso prazer e supostas vantagens do um sobre o outro. Prevê inclusive reajustes anuais, o que realmente é uma maravilha e uma compensação para os superficiais momentos de dúvida sobre o papel que temos que desempenhar dentro de um projeto que não é nosso. E assim seguimos sobre a plastificada felicidade de cumprir nossas tarefas dia após dia com a absoluta certeza de não sabermos a que viemos e a sensação de dever cumprido.
Numa grande loja de materiais de construção:
- Total da conta R$ 19,23 e por mais R$ 4,99 a senhora concorre a 20 mil reais
Paguei a conta e saí da loja com a cabeça voltada em mil pensamentos:
a) Porque é que eu tenho que pagar para concorrer a 20 mil reais?
b) Como é que se sente a funcionária do caixa que possivelmente mora no subúrbio, trabalha por escala, não tem 20 mil reais oferecendo esta proposta aos clientes da loja?
c) Onde está o meu direito de (não sei se coloco aqui cidadã ou apenas ser existente) em não querer ouvir tais propostas como também não querer ouvir o som alto dos carros na rua, ou o som do carro da pamonha ou da cândida?
d) Onde é que coloco a minha indignação sobre tudo isto? Indignação pelas pessoas que trabalham longam horas por pequenos salários achando que este lhes é o caminho merecido? Indignação pelas pessoas que são orientadas a fazer propostas indecorosas sem questioná-las ou pior sem o direito de questioná-las.
Não vejo saída. Vejo questões. Vejo intenções más que servem a interesses de segregação e isto entristece. Sinto a necessidade de conversar mais, de ouvir o que estas pessoas dos caixas das lojas pensam a seu próprio respeito. Será que não percebem que merecem mais do que lhes é oferecido?
- Total da conta R$ 19,23 e por mais R$ 4,99 a senhora concorre a 20 mil reais
Paguei a conta e saí da loja com a cabeça voltada em mil pensamentos:
a) Porque é que eu tenho que pagar para concorrer a 20 mil reais?
b) Como é que se sente a funcionária do caixa que possivelmente mora no subúrbio, trabalha por escala, não tem 20 mil reais oferecendo esta proposta aos clientes da loja?
c) Onde está o meu direito de (não sei se coloco aqui cidadã ou apenas ser existente) em não querer ouvir tais propostas como também não querer ouvir o som alto dos carros na rua, ou o som do carro da pamonha ou da cândida?
d) Onde é que coloco a minha indignação sobre tudo isto? Indignação pelas pessoas que trabalham longam horas por pequenos salários achando que este lhes é o caminho merecido? Indignação pelas pessoas que são orientadas a fazer propostas indecorosas sem questioná-las ou pior sem o direito de questioná-las.
Não vejo saída. Vejo questões. Vejo intenções más que servem a interesses de segregação e isto entristece. Sinto a necessidade de conversar mais, de ouvir o que estas pessoas dos caixas das lojas pensam a seu próprio respeito. Será que não percebem que merecem mais do que lhes é oferecido?
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